Da Folha de São Paulo.
Por José Geraldo Couto
O HAITI NÃO é aqui, mas é como se fosse. A presença de Zilda Arns, uma pessoa querida de todos os brasileiros, entre os milhares de vítimas fatais da tragédia que assola aquele país reforçou um sentimento que deveria ser natural, o de identificação de cada um de nós com a dor dos haitianos. Antes que alguém me acuse de estar me afastando do que deveria ser o foco desta coluna (o futebol), lembro que há pouco mais de cinco anos a seleção brasileira foi a Porto Príncipe realizar o chamado "jogo da paz", como parte do esforço diplomático de minimizar os danos da guerra civil haitiana. O Brasil venceu então o Haiti por 6 a 0, com um show particular de Ronaldinho, mas isso não importa. O que ficou na memória foi a imagem de milhares de haitianos seguindo e aclamando pelas ruas os craques brasileiros. Um momento de euforia que contrasta com a dantesca visão atual, de pessoas tropeçando em escombros e cadáveres, à procura de comida. Aquela não foi a primeira vez que o futebol brasileiro serviu para aliviar, ainda que momentaneamente, as desgraças do mundo. Nos anos 60, a presença do Santos de Pelé no Congo suspendeu por alguns dias a guerra civil que dilacerava o país. Sei que esses fatos podem ser usados para reforçar uma construção ideológica perigosa, a de que o nosso destino é produzir a festa e o circo, como se o papel que nos coubesse na divisão mundial do trabalho fosse o da cigarra da fábula, enquanto outros povos, mais sérios, seriam as laboriosas formigas. Mas há mais coisas aí. Nosso melhor futebol é aplaudido em toda parte, mas é nos lugares mais miseráveis que ele costuma suscitar um verdadeiro culto, uma autêntica adoração. Por que será? Tenho um palpite. No chamado processo civilizatório, o uso hábil das mãos foi o que permitiu ao homem se diferenciar e depois se afastar cada vez mais das outras espécies animais. A metade superior do corpo passou a ser vista como a sede das atividades "nobres": o pensar (cérebro), o sentir (coração) e o fazer (mãos). Ao mesmo tempo, a parte da anatomia localizada abaixo da cintura ficou associada às funções tidas na cultura cristã ocidental como "degradantes", como o sexo e a excreção, incômodos lembretes da nossa condição animal. Com a proibição do uso das mãos, o jogo de futebol de certa forma vai na contramão desse processo. Ao "dar aos pés astúcias de mão" (segundo o verso de João Cabral de Melo Neto), o futebol brasileiro inverte espetacularmente a hierarquia corporal. Por provir de um país pobre e periférico, opera igualmente uma outra inversão, geopolítica: o hemisfério Sul do planeta, historicamente subalterno, suplanta o norte branco e dominador, numa revanche catártica. Ao vibrar com os prodígios dos craques do Brasil, os pretos e pobres do mundo vislumbram a possibilidade, no mínimo simbólica, de revirar um destino infeliz que, de outro modo, pareceria inexorável, fatal. O Haiti precisa de comida, de água, roupas, remédios. Logo mais precisará de diversão, de arte, de futebol. Para voltar a ter esperança, sem a qual a vida não vale a pena.
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